Silêncio não é ausência de som

Sala anecoica da Microsoft

A sala, batizada de Building 87, foi criada com o objetivo da realização de testes de fones de ouvido e de outros gadgets. O nome técnico da sala é “câmara anecoica”, que caracteriza um local em que não há eco. Lá dentro, o ruído ambiente é de 20,3 decibéis negativos. Apenas poucas pessoas conseguiram suportar ficar na sala por um longo período de tempo, depois de alguns minutos, você já começará a ouvir os batimentos do seu próprio coração, seus próprios ossos rangendo e o sangue fluindo.

A experiência mostra que não existe materialmente o silêncio e quem brincou com isto na arte foi John Cage em seu concerto 4’33’’ no qual ficava em silêncio deixando a música ser os sons do ambiente.

Como ele declara em uma visita a uma destas câmeras de isolamento de som :

" Entrei em um destes na Universidade de Harvard

há vários anos atrás e ouvi dois sons, um alto e o outro baixo. Quando

os descrevi para o engenheiro encarregado, ele me informou que o

alto era o meu sistema nervoso em operação, o baixo, meu sangue

circulando. Até que eu morra haverá sons. “

A sua obra silêncio foi uma obra problema pois mostrou que não existe silêncio absoluto, ao não tocar nas teclas as pessoas foram emanando sons, o próprio ambiente da sala apareceu como uma produção musical. Neste contraponto ele provoca uma estranha escuta, uma atenção a moldura da obra e não ao seu conteúdo.

Photograph by Irving Penn / © 1947

Sabe-se que a influência do Zen, do Tao e de outras vertentes de filosofia oriental na vida de Cage começou cedo, em 1945, através da jovem musicista indiana Gita Sarabhai. Ao longo dos anos, seu interesse pelo pensamento oriental apenas se aprofundou, por intermédio, por exemplo, do I Ching e das aulas de Daisetsu Teitaro Suzuki, na Universidade de Columbia (NY)

Podemos entender esta busca de Cage através de um sutra (ensinamento sagrado) budista:

“o vazio é a forma, a forma é o vazio”

Trata- se de um abandono da tradição da arte e a busca de uma discussão sobre o próprio sentido da obra, um foco voltado para o processo por si só. A intenção de Cage era portanto deslocar a atenção em direção aos elementos que compõe nosso cotidiano assim como transmutar a forma como música, compositores e público eram até então percebidos. Em suas próprias palavras:

“Primeiro, precisamos de uma música na qual não só sons sejam simplesmente sons, mas na qual pessoas sejam simplesmente pessoas, ou seja, não sujeitas a leis estabelecidas por qualquer uma delas, mesmo se esta for ‘o compositor’ ou ‘o maestro’. Finalmente, precisamos de uma música que não mais estimule a participação do público, pois nela a divisão entre músicos e público não mais existe: é uma música feita por todos “

Um convite a olhar o que existe e nos rodeia , olhar uns aos outros e não somente o artista.

Existe nesta provocação de Cage a busca por uma presença ao invés do simples consumo, quem permanece na sala mesmo com o desconforto de uma expectativa de concerto que não aconteceu? Quem se permite atravessar o vazio e contemplar ? O silêncio não no sentido material do termo mas na aceitação da vida. Cage completa:

O nada que continuar é aquilo de que Feldman fala quando ele fala de estar submerso no silêncio. A aceitação da morte é a fonte de toda a vida. Assim é que ouvindo essa música a gente toma como um trampolim o primeiro som que aparece; o primeiro algo nos lança dentro do nada e desse nada surge o algo seguinte; etc. como um corrente alternada. Nenhum som teme o silêncio que o extingue. E nenhum silêncio existe que não esteja grávido de sons “

Estar disponível para o imprevisto momento que se apresenta, submergir grávido de possibilidades que não existiam antes do encontro. Uma poeticidade entendida como corporeidade , um silêncio como abertura aos novos sons e sentidos.

Algumas sugestões de leitura :

CAGE, John. Silence: lectures and writings. Hanover: Wesleyan University Press, 1961.

CAGE, John. De Segunda a um ano. Tradução de Rogério Duprat, revista por Augusto de

Campos. São Paulo: Editora Hucitec, 1985.

CAGE, John; KOSTELANETZ, Richard. Conversing with John Cage. New York: Routledge. 2003

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