Mudanças mudas

“Mudaram as estações e nada mudou
Mas eu sei que alguma coisa aconteceu
Está tudo assim tão diferente”

Conhece esta música da Cássia Eller ?

Existem mudanças que são silenciosas e que se apresentam em algum momento da vida como uma situação inesperada.

Uma amiga me contou que seu ombro congelou de repente, uma situação de dor intensa e rigidez do braço. É claro que não foi assim, a imobilidade foi se esculpindo lentamente, dia a dia em suas articulação e fáscias. Certamente ela teve pequenos avisos ao longo deste tempo, um adormecimento da mão que ela justificou como uma noite mal dormida, algumas dores passageiras em partes correspondentes do corpo mas que ela simplesmente anestesiou. Aquela dor de cabeça silenciada com o comprimido guardado na bolsa. Quem nunca calou uma dor antes mesmo de ouvir ?

Ou seja a mudança se mostrou de forma sutil mas ela não deu atenção ao processo e este foi se densificando. Agora a dor é inevitável e as impossibilidades do movimento se apresentam consolidadas, é preciso cuidar com urgência.

Trago este exemplo no corpo por conta da sua visibilidade contundente, mas podemos viver nas emoções o mesmo processo: sentimentos renegados que se empilham numa prateleira frágil do "tá tudo bem” e que num acontecimento banal, desabam numa crise de choro inexplicável.

Olhamos ao redor e aquele ambiente que era tão familiar e querido parece ter mudado totalmente, já não pertencemos mais. Ou o caso de um relacionamento que nos últimos tempos tem um sabor amargo, trazendo intimamente a pergunta atônita: O que me trouxe até este total estranhamento ?

Você já viveu alguma destas experiências ?

Quando falamos a palavra mudança geralmente associamos com projetos planejados, coisas que desejamos e que com nossa força de vontade fazemos acontecer : a escolha de viver em uma outra cidade, um curso que vai abrir novas possibilidades ou outra carreira, um corte de cabelo inovador, uma outra forma de viver que cultivamos com intensidade.

Presentes em um mundo que respira empreendedorismo, encontramos infinitas possibilidades de mudar intencionalmente: cursos rápidos nas mídias sociais de maquiagem, passo a passo para deixar algum vício que atrapalha a sua convivência, receitas de bem viver que prometem uma nova vida em 21 dias.

Mas é importante entender que não somos somente nós os agentes das mudanças e que simultaneamente acontecem transformações em nosso corpo ou no contexto que fingimos não ver ou que realmente não percebemos.

Como foi que isto aconteceu ?

Esta é a pergunta que sempre aparece quando uma crise implode nossa rotina e percebemos que alimentamos a fantasia de que tudo em volta estava parado. A suspensão da atenção que fizemos para seguir nossos planos mostra a sua fragilidade; temos agora que lidar com o imprevisto ou melhor dizendo o não visto.

Talvez mudar não seja algo tão linear e simples assim como vemos nas propagandas. Ao focar tudo naquele projeto específico o que deixamos de lado e relegamos ao tempo ? Fazemos as escolhas sozinhos ou partilhamos os impactos possíveis deste processo com quem amamos ?

Vale refletir como diz Adam Philips em seu livro Sobre querer mudar:

“não há descrição de uma vida sem um relato de mudanças que são possíveis dentro dela. Ou seja, existem as histórias que contamos sobre a mudança e a forma como realmente mudamos, e nem sempre as duas coisas coincidem ou se combinam "

Cecília Meireles tem um poema impactante sobre este atordoamento de descobrir-se mudada:

“Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida
a minha face? “

É com melancolia que ela percebe que ao fazer sua vida no tempo o Tempo desenhava nela uma outra pessoa, que no momento, ela sente desconhecer. Cecília declara : Eu não dei por esta mudança.

Ela não estava atenta que ao mover a realidade era também movida em outros aspectos por esta. É a frase tão conhecida do filósofo espanhol : “Eu sou eu e minha circunstância e se não salvo a ela, não me salvo a mim”
Acompanho muitos projetos interessantes que simplesmente desconsideram as circunstâncias, e não falo aqui de análises dos contextos comerciais ou estudos de marketing, mas de uma pergunta mais central :

E se este seu plano de mudança der certo , você sabe a nova vida que está imbricada nele ?

É fundamental ouvir estas sutilezas mudas , todo movimento desenha novas ambiências e estas atuam sobre nós de forma silenciosa esculpindo vagarosamente outras mudanças. Estar consciente de uma escolha é cuidar destas complexidades para não se perder de si.


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Silêncio neural