Mia Couto: afinar silêncios
O silêncio para Mia Couto é parte de uma estrutura musical profunda e se alimenta do “não dito”. A quietude atravessa diferentes personagens nos romances do escritor, criando cenas imersas em reticências.
Escritor moçambicano. Biólogo e jornalista, recebeu em 2013 o Prêmio Camões por suas obras.
Foto: Mia Couto em 1965 (Beira) © Acervo de família.
A palavra, por vezes, não consegue alcançar a intensidade ou a força do vivido. Nestes contextos apelamos ao silêncio como uma forma poética da ausência, pois não temos uma forma de expressar o que foi sentido.
Em sua obra "O Outro pé da sereia” , o escritor declara :
“O silêncio não é a ausência da fala, é o dizer-se tudo sem nenhuma palavra.”
Mia Couto entende o silêncio como uma espécie de travessia, um convite para uma viagem interior. É preciso “mastigar o tempo” para encontrar as palavras certas. No romance “No último vôo do flamingo” a personagem Ana Deusqueira explica :
“A sabedoria do branco mede-se pela pressa com que responde. Entre nós o mais sábio é aquele que mais demora a responder. Alguns são tão sábios que nunca respondem”
Mia Couto fala em entrevista, que em sua terra natal, as conversas são repletas de silêncio e que há coisas que só podem ser ditas através desta demorada espera.
No texto de 2005 : “Uma palavra de conselhos e um conselho sem palavras” ele explica:
“existe nas zonas rurais gente que, sendo analfabeta, é sábia. Eu aprendo muito com esses homens e mulheres que têm conhecimentos de outra natureza e que são capazes de resolver problemas usando uma outra lógica para a qual o meu cérebro não foi ensinado. Este mundo rural, distante dos compêndios científicos, não tem menos sabedoria que o mundo urbano onde vivemos. Estar disponível para escutar nessa linha de fronteira: essa pode ser uma grande fonte de prazer. “
Na tradição oral africana, pausas e silêncios são parte da performance dos griots (narradores/poetas), porque dão espaço para a memória, a emoção e a interpretação coletiva. Ou como sintetiza o escritor :
"O silêncio é que fabrica as janelas por onde o mundo se transparenta."
Em seu livro “Antes de Nascer o Mundo” o narrador Mwanito, um menino de 11 anos que vive isolado com o pai, Silvestre Vitalício, e o irmão, Ntunzi, numa antiga fazenda abandonada. O menino cresce nesse isolamento, aprendendo a "afinar os silêncios" — metáfora para dar sentido às ausências, memórias e dores.
“Eu nasci para estar calado. Minha única vocação é o silêncio. Foi meu pai que me explicou: tenho inclinação para não falar, um talento para apurar silêncios. Escrevo bem, silêncios, no plural. Sim, porque não há um único silêncio. E todo o silêncio é música em estado de gravidez.
Quando me viam, parado e recatado, no meu invisível recanto, eu não estava pasmado. Estava desempenhado, de alma e corpo ocupados: tecia os delicados fios com que se fabrica a quietude. Eu era um afinador de silêncios.”
Este estado silencioso é também um “lugar de cura”: no silêncio se acessa a força vital (nyama, axé, nto) que circula no universo. O silêncio aqui pode ser entendido como uma forma de reza um rememorar que abre a espiritualidade da escuta.
“Meu pai dizia que só no silêncio a alma se ajoelha.”
Este trecho da obra Jerusalém de 2009, reverbera esta importância de guardar o silêncio como um espaço sagrado, uma entrega a escuta que Mia Couto revela como o segredo da sua escrita :
“Eu comecei por escutar, ainda hoje escrevo porque escuto. Essa dificuldade de nos apagarmos para ouvir realmente o outro, não só a palavra, mas o silêncio do outro, o corpo, as pausas, esse é o segredo.”
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A Residência criativa está numa pesquisa sobre processos de criação e o silêncio.
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