Fruir o fluir
Fruição é uma palavra de múltiplos significados, ela pode remeter ao saborear de uma sobremesa deliciosa, a capacidade de apreciar uma obra de arte ou ao simples inspirar profundamente, mergulhando numa paisagem que encanta.
Em todos estes exemplos encontramos uma particularidade do tempo : a duração. Para fruir não basta o instante é preciso que o tempo ganhe uma plasticidade e que permita uma presença imersiva.
A duração é um fluxo contínuo, indivisível e imprevisível., um mergulho profundo.
Você certamente já viveu um momento assim, é quando dizemos que perdemos a hora : ou seja não estamos mais no tempo cronometrado e dividido das tarefas.
A idéia de fluxo vem justamente desta incapacidade de contar e medir, somos imersos numa experiência que toma os nossos sentidos e somos levados pelas sensações.
É uma entrega e ao mesmo tempo uma porosidade à realidade que este poema de Manoel Bandeira expressa de forma sutil.
A profundidade tranquila é uma forma de poder refletir as nuvens e as estrelas, uma alteridade que só este silêncio interno permite
O não temor, a confiança é uma chave para a entrega a este tempo que flui e pode durar, se estender e permitir o profundo .
Manuel Bandeira retoma esta compreensão de uma diluição num tempo que dura em outro poema, onde convida a um passo mais ousado:
“Canção do vento e da minha vida”
O vento varria os meus pensamentos
Eu via o vento varrendo o tempo
O vento varria os meus pensamentos
E eu não sabia que o vento varria o tempo.O vento varria os meus pensamentos
E eu ficava só com o tempo.O vento varria o tempo e eu ficava só com os meus pensamentos.
O vento varria o tempo e os meus pensamentos...
E eu ficava só.O vento varria o tempo, os meus pensamentos, e eu...
O poeta deixa de ser aquele que observa o tempo e se torna parte do movimento do vento.
Ele é o próprio tempo que dura, o próprio instante que vive.
Esse é o ápice da experiência : o momento em que não há mais distância entre sujeito e vida — tudo é fluxo.
Bandeira transforma a fragilidade da existência em presença sensível e convida a um certo evanescimento do eu. Um estado sem promessas de futuro ou ameaças do passado, um puro estar pulsante e presente.
A poesia é sempre fonte de meditações intensas e pode nos ajudar a varrer o tempo dos condicionamentos que impedem o nascimento do novo em nossos processos de criação. Poder demorar o olhar e retomar o dito, refazendo as delicadezas da palavra sem pressa pra chegar numa conclusão.
“Os tempos são urgentes, desaceleremos.”
Bayo Akomolafe