Maria Lira Marques : ser(tão) imaginal

Maria Lira Marques (1945-), nascida em Araçuai (Vale do Jequitinhonha, MG), tem um diálogo com a natureza em diversas formas. Sabe e entende que veio da terra e que para ela voltará. 

Sua mãe fazia bonecas de pano e presépios de barro para presentear os vizinhos, e assim foi despertada a curiosidade de Lira: ainda criança, começou a fazer pequenas esculturas com cera de abelha, posteriormente se dedicando à cerâmica. 

Os desenhos em papel e pedra só surgiram em 1994, após fortes dores nos braços e foram potencializados no encontro na Ciranda de filmes em 2016 com a arte educadora Sirlene Giannotti. A polinização de técnicas e simpatias gerou vários encontros entre as duas artistas  e frutificou  numa tese de doutorado escrita com profunda amorosidade (recomendo muito a leitura!)

Lira coleciona diferentes tons de pigmentos minerais que encontra no seu entorno , além de investigar e acumular um conhecimento inesgotável sobre a cultura popular, o comportamento, a música, os habitantes e sobretudo a vida dos que lá persistem.

Sua obra é um mergulho num mundo onde o espiritual e o material não estão dissociados, um acesso ao "mundo imaginal" (alam al-mithal), uma ideia burilada por pensadores como Henry Corbin e Gilbert Durand. Esse conceito refere-se a uma dimensão intermediária entre o mundo sensível e o intelectivo, onde símbolos, sonhos e visões poéticas se manifestam.

O silêncio, no contexto do pensamento de Corbin, tem uma relação profunda com o mundo imaginal, pois se vincula ao processo de contemplação, escuta interior e revelação espiritual. 

O silêncio não é apenas a ausência de palavras, mas um estado de atenção e abertura ao que se manifesta e Sirlene em sua tese narra que a biografia da artista deve ser contemplada em sua inteireza pulsante, na admiração dos eventos que florescem sua maestria e ancestralidade.

No pensamento de Corbin, a linguagem poética e simbólica é a única capaz de expressar as realidades do mundo imaginal. Entretanto, essa linguagem só pode emergir do silêncio, pois o silêncio é a matriz da verdadeira escuta interior. Esse silêncio não é um vazio, mas um espaço fértil onde as imagens espirituais podem surgir. Lira em uma entrevista realizada pelo Expresso Ilustrada em 2021 fala :

“Você vê que meus bichos não são esses bichos daqui desse mundo, não. Às vezes esse ali parece que é um veado, eu não tive a intenção de fazer um veado, eu não tive a intenção de fazer determinado animal. Mas se as pessoas acham que parece, tudo bem”

Fotografia de Lori Figueró

A escolha do barro como materialidade já é um convite a quietude. O silêncio é condição para o devaneio, para a escuta da matéria e para a imaginação criadora. No trabalho com o barro, há um silêncio operante, um diálogo mudo entre a mão e a argila que permite que a forma surja.

No livro A Terra e os Devaneios da Vontade, Gaston Bachelard  explica a materialidade da terra e sua relação com a imaginação, fala sobre a plasticidade do barro e seu papel na criação:

"A argila modelada mantém a marca da mão, conserva a impressão dos dedos, testemunha a atividade sonhadora que a moldou. O oleiro não apenas impõe uma forma, ele conversa com a matéria, sente sua resistência, ajusta seus gestos ao apelo da substância. O barro não é inerte; ele participa da criação, responde ao toque, guarda a memória do trabalho."

Recentemente foi publicado um livro com uma seleção das obras de Maria Lira Marques ao longo de sua vida, é um bom modo de iniciar este encontro com a artista.

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