Processos de criação: Akira Kurosawa

Criamos um podcast para conversar sobre os processos de criação e suas interfaces poéticas e comunicativas.

A idéia é ler e comentar livros que falam sobre processos criativos, bem como buscar explicitar conceitos e processos através de mergulho em obras e nos relatos de seus criadores, ouvindo os rastros dos seus percursos criativos nos seus diários, entrevistas e anotações das mais diversas formas.

Neste primeiro exercício de entendimento do movimento imaginativo, escolhemos Akira Kurosawa um cineasta japonês , nascido em Tóquio em 1910. Ele sonhava em ser pintor e com 26 anos foi trabalhar como roteirista e assistente de diretor. Em 1981 publica seu Relato Autobiográfico e nele esclarece o seu projeto poético :

Eu suponho que os meus filmes tem um tema em comum e penso que este tema é realmente a pergunta da minha vida : Porquê as pessoas não conseguem ser felizes juntas ?
— Akira Kurosawa

Kurosawa escreve seus roteiros e comenta: “Um romance e um roteiro são coisas inteiramente diferentes. A liberdade que o romance nos dá para realizar uma descrição psicológica é particularmente difícil de ser transposta num roteiro, sem que utilizemos a narrativa”

Utiliza para as filmagens os “storyboards” que julga serem fundamentais para a equipe de trabalho entender a proposta .

“Ao desenhar “storyboards”, penso em uma verdadeira miríade de de coisas. O ambiente que caracteriza o lugar, a psicologia e as emoções dos personagens, seus movimentos, os ângulos da câmera necessários à captação destes movimentos, as condições de iluminação, figurino e acessórios (…) desenho os “storyboards” para refletir essas coisas”

“ Procedendo dessa madeira, solidifico, enriqueço e capturo a imagem de cada cena de um filme até que visualize com clareza. Só depois disso é que parto para a filmagem propriamente dita. No entanto, tenho de fato a impressão de que esse processo já toma forma em meu pensamento no momento em que escrevo o roteiro, porque muitas vezes encontro todos os tipos de desenho no verso dos rascunhos que rejeito”

Storyboard de Akira Kurosawa

O cineasta afirma que dentro do set de filmagem os personagens ganham vida, e que nada mais prejudicial a um filme do que o diretor tentar cortar e conter ações bem sucedidas de atores apenas para se manter fiel a um roteiro. Ou seja, mesmo com todo os detalhes de seus desenhos planejados ele permite e aceita as modificações do processo.

Personagens tem existência própria num filme. O diretor não é livre para lidar com eles. Se insiste em manter sua autoridade perde a vitalidade
— Kurosawa ,1990

O cineasta critica as pessoas que refazem sempre os mesmos filmes que fizeram sucesso no passado e não buscam sonhar o novo. Comenta as dificuldades enfrentas na decisão de explorar o uso de três câmeras no filme “Os sete samurais”

“ Se eu tivesse filmado este trecho usando o método tradicional de tomada por tomada, não havia garantia de que qualquer ação pudesse ser repetida duas vezes da mesma forma. Então usei três câmeras e o resultado foi extremamente eficaz”

Temos aqui a ousadia com os limites da linguagem e sua recompensa poética.

Kurosawa ao ver-se diante da dificuldade de cortar cenas filmadas, revela algo sobre os princípios direcionadores da sua obra:

“O importante é mostrar uma obra completa sem excessos. Você não necessita do que não é necessário. Diz- se que o cinema é a arte do tempo, mas o tempo gasto sem sentido pode ser chamado de perda de tempo “

Em uma montagem Kurosawa explica esta delicadeza da edição :

“Há um ponto da história em que uma égua procura desesperadamente seu potro, que havia sido vendido. Como se estivesse enlouquecida, ela derrubava a porta do estábulo ,ia até o pasto e tentava passar a cerca. Fiz uma edição dramática. Emendei detalhadamente o filme para revelar expressões e movimentos. Entretanto quando projetada, a cena não transmitia qualquer sentimento. Montei-a outras vezes e não conseguia transportar a dor e o pânico do animal para a tela. Yama -san sentou-se ao meu lado e me viu editar o filme diversas vezes, mas não disse uma palavra sequer. Se não afirmasse “está bom “, eu saberia que o trabalho estava ruim. Cheguei a um impasse e, finalmente pedi-lhe um conselho.
Ele disse : “Kurosawa esta sequência não é um drama. é mono-no-aware”
Mono- no aware , a tristeza pela natureza transitória das coisas, como o doce e nostálgico pesar de ver as floradas da cerejeiras chegar ao fim, quando ouvi esta antiga expressão poética japonesa, despertei como se tivesse acordado de um sonho.
”É isso ! exclamei e refiz a edição.
Cortei somente os takes longos. As cenas ficaram agrupadas como uma série de aparições rápidas da égua galopando - sua crina e rabo voavam ao vento numa noite de luar. Só isso era suficiente. memo sem qualquer som, sentia-se o patético relinchar da égua-mãe e a melodia lúgubre de um instrumento de sopro de madeira.
— Akira Kurosawa

Kurosawa revela neste trecho a importância também da parceria e escuta do outro, nos processos de criação. Podemos ficar obstinados numa escolha e precisamos deste segundo olhar, para voltar a ter uma perspectiva ampliada do processo.

O cineasta buscou em todos os seus filmes realizar este inacabado que é o projeto poético e expressar seu gesto.

“A raiz de qualquer projeto cinematográfico situa-se, para mim, nesse desejo interior de expressar algo. O que nutre esta raiz e faz prolongar-se numa árvore é o roteiro. O que faz a árvore produzir flores e frutos é a direção.

Ouça este episódio em nosso PODCAST sobre processos criativos

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