Eustáquio Neves : alquimia fotográfica

Em grego phosgraphein, “marcar a luz”, “registrar a luz” ou “desenhar na luz”, em tradução livre. A partir de um suporte onde existe uma imagem definida como efeito da luz – seja ela produzida com aparelho digital ou analógico, com ou sem câmera, com ou sem ampliador, com ou sem os químicos tradicionalmente empregados – temos uma fotografia.

Diante de uma imagem – não importa quão recente, quão contemporânea ela seja –, o passado também não cessa jamais de se reconfigurar, pois esta imagem não se torna pensável senão em uma construção da memória, chegando ao ponto de uma obsessão. Diante de uma imagem, temos, enfim, de reconhecer humildemente: provavelmente, ela sobreviverá a nós, diante dela, nós somos o elemento frágil, o elemento passageiro, e, diante de nós, ela é o elemento do futuro, o elemento da duração. Frequentemente, a imagem tem mais memória e mais porvir do que o ente que a olha.

Georges Didi-Huberman

O surgimento da fotografia significou uma mudança radical do papel na visão na arte, uma mudança que dependeu da maturação de concepções particulares sobre entidades abstratas como o tempo e o espaço, e de uma nova posição do observador . Isso nos faz pensar que o artista, quando escolhe a linguagem fotográfica, elege também a manipulação de espaços e tempos como premissa autoral. Roland Barthes, cujas análises da fotografia enfatizaram o tema do tempo, a temporalidade é tratada a partir de uma instantaneidade pontual, a marca de algo que foi no passado, “o isto foi”.

Poucos autores se dedicaram realmente a uma relação entre essa instantaneidade e duração na fotografia. Na realidade, pensar o instante fotográfico como ausência de tempo ou, na melhor das hipóteses, como sua representação especializada, é também supor que ele se apropria de um tempo especializado. A duração de todas as coisas, em sua multiplicidade, é como o presente: inapreensível em completude. O fotógrafo diz:

“O tempo é a construção de momentos; não é algo que se programe, mas são várias situações e fragmentos que se constituem no tempo e a imagem desse tempo é fragmentada”.

Eustáquio Neves, ao trabalhar com a sobreposição de negativos, necessariamente dilata e fragmenta ambos, o eixo temporal e as dimensões espaciais, de tal modo que espaços e tempos não sejam imediatamente reconhecíveis. Por meio dos tratamentos e intervenções sucessivas na imagem, Neves afasta os referentes em um esforço artístico que se orienta à duração e à fluidez, delegando cada vez mais ao observador o estabelecimento de suas próprias marcações.

“A discussão do tempo de criação é sempre plural: há a coexistência de diferentes tempos. A criação como processo implica em continuidade, sem demarcações de origens e fins precisos. O tempo contínuo da investigação enfrenta diferentes ritmos de trabalho, e envolve esperas do artista pelo tempo da obra, assim como esperas da obra pelo tempo das avaliações do artista. O tempo da maturação leva, muitas vezes, à simultaneidade de diferentes obras. O tempo da hesitação e da dúvida leva a idas e vindas, fluxos e pausas. A continuidade confronta-se também com rupturas, como nas intervenções do acaso e os bloqueios de criação. Há, também, os instantes sensíveis da continuidade, associados às descobertas. O processo de criação, que está inserido em seu tempo histórico e em suas redes culturais, não pode ser desvinculado do tempo de autocriação do artista.

(Cecília SALLES, 2010)

Eustáquio é um dos fotógrafos mais respeitados quando o assunto é a arte multimídia aliada à herança africana no Brasil, autor de uma vasta obra em foto-arte que incluem prêmios e exposições no Brasil e internacionais. Nascido em Juatuba, Minas Gerais, químico de formação, mas foi no autodidatismo fotográfico que se identificou como artista. É casado com Lilian Oliveira Neves e residente na cidade de Diamantina, local que detém uma forte atuação preta, em especial, pela história de seres humanos em situação de escravidão. 

O fotógrafo conta sobre outros artistas que o inspiram nas Artes Plásticas, no Cinema e na Literatura :

“Há uma atmosfera nos filmes de Tarkovski, um tempo que identifico com o meu tempo de narrativa. Arthur Bispo do Rosário revela muito da contribuição do negro nas artes plásticas. Recentemente Spike Lee (cineasta e dramaturgo estadunidense) disse que não existe arte contemporânea sem a contribuição do negro, e a arte do Bispo do Rosário representa isso. O Bispo me auxiliou como subverter a fotografia e manipular a foto de forma a não me sentir limitado com as técnicas tradicionais da arte fotográfica. Já na literatura quem me marcou foi Machado de Assis. Na infância, li muito Machado, mas um autor com quem já trabalhei e admiro a literatura, e é preciso que os negros leiam, é o Edmilson de Almeida Pereira.”

Surge, assim, um conceito de autoria, exatamente nessa interação entre o artista e os outros. É uma autoria distinguível, porém não separável dos diálogos com o outro; não se trata de uma autoria fechada em um sujeito, mas não deixa de haver espaço de distinção. Sob esse ponto de vista, a autoria se estabelece nas relações, ou seja, nas interações que sustentam a rede, que vai se construindo ao longo do processo de criação (SALLES, 2006 ).

A fotografia experimental de Eustáquio cria imbricações de linguagens da fotografia com pintura, textos e abrasões que visam gerar metáforas visuais sobre como as histórias oficiais são geradas em camadas simbólicas. “Qualquer coisa serve para a imagem”, disse ele, evocando, talvez involuntariamente, a função crucial da coisa, do objeto, na materialização de suas memórias e tempos.

Essa montagem do acúmulo, do sobreposto e do objeto em reuso colabora ainda para a manutenção do véu onírico, sobre o qual falei anteriormente. O afastamento daquilo que é esperado de determinada linguagem e das coisas do mundo transforma o utilitário em fantástico.

Encontramos nas suas obras fotográficas outros elementos, tais como, matrizes, filmes fotográficos, desenhos, recortes de jornais num adensamento de sentidos.

série Boa aparência #6, 2000, fotografia com técnica mista, Eustaquio Neves

Eustáquio Neves, o sujeito fotográfico, define a si mesmo nas tantas camadas sobrepostas e surge como resultado do incerto, do apagamento, da ausência de informações precisas, da transformação dos objetos em imagens.

“De volta ao começo e ao simples, cada vez mais minimalista”

Saiba mais : Instagram Eustáquio Neves

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