Sonhar para criar : aprendendo com os sonhos lúcidos

Sonhos para muitos artistas são fontes primordiais da imaginação, são muitos os relatos de artistas que acordam com melodias, imagens e propostas para escrever romances e roteiros.

Albrecht Dürer, mestre renascentista criou inclusive um tratado recomendando para os jovens artistas a prática do sonho como uma nutrição estética. O pintor recomenda anotar, para fugir do esquecimento, estas fontes de inspiração.

“Quantas vezes vejo grande arte enquanto durmo, mas ao acordar não consigo lembrar; assim que acordo, minha memória esquece”

Dali, outro pintor muito influenciado pelas imagens oníricas praticava um método próprio para permanecer o maior tempo possível neste estado umbral do inconsciente. Ele ficava com uma colher pesada de metal pesada entre os dedos e quando o objeto caía causando estrondo ele anotava a profusão de imagens imediatamente.

Veja uma das telas criadas dentro deste método : Sonho causado pelo voo de uma abelha ao redor de uma romã um segundo antes de despertar

A expressão sonho lúcido foi cunhada por Frederic Willens Feden em 1913 , implica em você se tornar consciente do que está sonhando e até interferir na condução da narrativa imaginada.

A lucidez onírica é praticada por vários povos ameríndios, aborígenes , iogues e monges. Reconhecido por Aristóteles, Galeno e Santo Agostinho o sonho autoconsciente vem sido estudado com afinco desde muito tempo. Em 1980 Stephen LaBerge, na Universidade de Stanford revelou através de suas pesquisas em laboratório, que durante o sono REM é possível desenvolver a habilidade do sonho lúcido e que esta pode ser treinada com aparelhos luminosos.

O pesquisador criou o termo onironauta (do Grego Oniro óneiros, Sonho + Nauta náutés, navegante/explorador), que passou a ser usado para designar pessoas que conseguem controlar seus sonhos.

Estudiosos como Sidarta Ribeiro em seu livro “O Oráculo da Noite “ nos convida a este despertar para dentro e conta a experiência do milam, a ioga dos sonhos praticada pelos monges do Tibete :

“O milam é aprendido em etapas sucessivas, com pequenas variações segundo as distintas linhagens tradicionais. Para começar, o sonhador precisa aprender a reconhecer que está sonhando, isto é , precisa aprender a tornar-se lúcido dentro do sonho……A capacidade de sustentar essa crítica da realidade é essencial para que se inverta a casualidade das relações oníricas, de modo que os eventos oníricos deixem de simplesmente acontecer ao sonhador e passem a ser provocados por sua vontade.”

A literatura de ficção que sempre se interessou pelo tema, mergulhando nas aventuras distópicas destas habilidades.

Quem já assistiu o filme Inception de Christopher Nolan, pode visualizar como ele brinca com as possibilidades da incubação de sonhos e vemos esta primeira etapa do treinamento simbolizada no pião do protagonista, que no mundo dos sonhos nunca para de rodar.

Nolan profundo leitor de Jorge Luis Borges trouxe para o filme as influências do conto : As ruínas circulares. O cineasta explica em suas entrevistas que desde que tinha dezesseis anos, queria descobrir como ter consciência de estar sonhando. Na vida adulta aprendeu que poderia estudar como alterar os eventos do seu sonho.

"Tentei trabalhar a ideia da manipulação e do arranjo de um sonho consciente ser uma habilidade que essas pessoa possuem. O roteiro é baseado nesses conceitos e experiências “

Este universo do sonhar modificando a realidade também foi trabalhado pela escritora Ursula K Le Guin no livro: A curva do sonho.

Ao acordar o protagonista Orr lembra de tudo como era antes do seu sonho, mas todos a sua volta parecem não saber de nada, como se, independente do que ele tivesse sonhado, aquela realidade sempre tivesse sido daquele jeito para os demais.

A cada início de capítulo do livro temos trechos de pensadores e autores que falam da nossa relação com os sonhos. Alguns dos trechos mencionados são de um filósofo taoista chinês.: Chuang Tzu que reflete bem esta instabilidade subjetiva.

“Sonhei que era uma borboleta, e quando acordei vi que era um homem. Agora não sei se sou um homem que sonhou ser borboleta, ou se sou uma borboleta que sonha ser um homem”

Ursula nos convida a pensar nas consequências de nossos sonhos, acordados ou lúcidos, esta diferença parece não importar. Em seus livros, ela sempre nos convida a pensar sobre outras possibilidades do viver e seus ensaios imaginativos nos despertam para nossas incongruências e preconceitos.

E você com o que anda sonhando ?

Você tem um sonhário ?

Este é o nome dado aquele diário que fica na cabeceira da sua cama para você anotar o que lembra assim que acordar. Quem sabe se com a prática de escrever os sonhos não conseguimos produzir um poema assim :

Entre o sono e sonho,
Entre mim e o que em mim
É o quem eu me suponho
Corre um rio sem fim.

Passou por outras margens,
Diversas mais além,
Naquelas várias viagens
Que todo o rio tem.

Chegou onde hoje habito
A casa que hoje sou.
Passa, se eu me medito;
Se desperto, passou.

E quem me sinto e morre
No que me liga a mim
Dorme onde o rio corre —
Esse rio sem fim.

Fernando Pessoa





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