O jogo imaginativo de Italo Calvino

“No começo de toda história que escrevi existe uma imagem que gira em minha cabeça, vinda não sei de onde e que talvez eu carregue durante anos. Pouco a pouco me dá vontade de desenvolver essa imagem numa história com princípio e fim, e ao mesmo tempo - mas os dois processos são com frequência paralelos e independentes - convenço-me de que ela encerra algum significado. Quando começo a escrever, porém, tudo isso se acha em estado lacunoso em minha cabeça, nada mais do que um esboço. É só a medida que vou escrevendo que cada coisa acaba encontrando o seu lugar “

The Paris Review

Calvino em seu projeto poético tem grande interesse nos jogos combinatórios como base do processo criativo , no livro das Seis propostas para o milénio ele declara sua busca pela clareza e limpidez na escrita :

“Gosto do que é complexo emaranhado, difícil de escrever; e procuro expressá-lo num estilo o quanto mais límpido “

Encontramos em várias obras esta complexidade expressa na variedade lúdica e para dar conta destas configurações possíveis do imaginário , muitas vezes, o escritor usa o desenho diagramático para se orientar.

Vemos esta representação explícíta no seu livro O Castelo dos Destinos Cruzados, publicado em 1969, no qual o escritor parte da iconografia de baralhos das cartas do tarô como inspiração e ordem, para uma “narratomancia” que retoma posteriormente em A Taverna, reunindo e editando os dois textos em 1973.

O processo de escrita foi intenso como conta Calvino :

“Passava dias inteiros a compor e recompor o meu quebra-cabeça, imaginava novas regras do jogo, traçava centenas de esquemas ; em quadrados, em losangos, em estrela, mas sempre haviam cartas essenciais que permaneciam fora e cartas supérfluas que ficavam no meio, e os esquemas se tornaram tão complicados…. que eu acabava me perdendo neles.

……….

Havia noites em que acordava para ir anotar uma correção decisiva, que acabava arrastando consigo uma cadeia interminável de modificações. Outras havia em que me deitava com alívio de haver encontrado a fórmula perfeita; e de manhã , mal me levantava, rasgava-a.”

O próprio escritor acaba por identificar o livro em 1998, como uma busca :

“procura ser uma espécie de máquina de multiplicar as narrações partindo de elementos figurativos com múltiplos significados possíveis como as cartas de um baralho de tarô”

“No Castello, não uso a técnica de confiar na sorte e na casualidade. Obrigo a carta do tarô a contar uma certa história e sacrifico, fazendo isso, parte do modelo. Em literatura, sou contrário tanto ao acaso quanto às fórmulas mecânicas” Calvino, apud Pessoa Neto, 1997,

Maria Silvia Bigareli em seu estudo detalhado da obra em sua Tese: Processo de Criação e Jogos Combinatórios: Procedimentos Comunicativos em Italo Calvino; mostra que a irregularidade e complexidade do percurso das cartas ao contar as narrativas é surpreendente.

A dificuldade é o que o instiga o escritor :

“Devo dizer que a maior parte dos livros que escrevi e aqueles os quais tenho em mente de escrever, nascem da idéia de que escrever tal livro me parecia impossível.
Quando me convenço de que um certo tipo de livro está completamente distante das possibilidades do meu temperamento e das minhas capacidades técnicas, sento-me à escrivaninha e me ponho a escrevê-lo. “

Enquanto o livro estava em provas, o autor continuou a remexê-lo, confessando que o publicou para se libertar.

Em carta a Mario Lavagetto de 1973, Calvino conta que “se deu por vencido” e que resolveu publicar o material acumulado como: “testemunho do meu falimento”. Não fosse o relato em Nota do escritor essa “falha” não seria percebida pelos leitores, a não ser em situações, como aqui, em que análises dos percursos das cartas fossem realizadas.

Em nossa tentativa de compreensão dos erros, ao longo da criação artística, vemos que os documentos de processo registram um grande número de referências a esses não acertos, percebidos como tais a partir de critérios pessoais, associados ao projeto poético do artista.

É importante relembrar a inserção histórica do projeto que, certamente, deixa suas marcas no estabelecimento desses critérios :

“Às vezes procuro concentrar-me na história que gostaria de escrever e me dou conta de que aquilo que me interessa é uma outra coisa diferente, ou seja, não uma coisa determinada mas tudo o que fica excluído daquilo que deveria escrever: a relação entre esse argumento determinado e todas as suas variantes e alternativas possíveis, todos os acontecimentos que o tempo e o espaço possam conter. É uma obsessão devorante, destruidora, suficiente para me bloquear. Para combatê-la, procuro limitar o campo que pretendo dizer, depois dividi- lo em campos ainda mais limitados, depois subdividir também estes, e assim por diante. Uma outra vertigem então se apodera de mim, a do detalhe do detalhe do detalhe, vejo-me tragado pelo infinitesimal, pelo infinitamente mínimo, como antes me dispersava no infinitamente vasto (Calvino, 1998)

O que foi escrito e o que era o projeto do artista, a leitura da obra pode ser enriquecida pelo entendimento de sua busca, das dificuldades encontradas e das descobertas no caminho. Veja outros livros de italo Calvino, cada um esconde um mistério , um jogo, uma proposta de se perder e se encontrar .

Recomendo a brincadeira !

Se você se interessou pelo livro : O Castelo dos destinos cruzados, dá uma olhada neste vídeo :

Ouça o episódio aqui:Spotify

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