A cidade invisível: sentidos encantados

A série brasileira da Netflix tem como protagonista um policial florestal chamado Eric, que descobre um mundo oculto de criaturas míticas que vivem no Rio de Janeiro , a cidade que vive mas que só descobre após a morte trágica de sua esposa.

Esta cidade invisível revela um mundo de magia, perigo, segredos sombrios e criaturas míticas Eric vai também descobrindo a possibilidade de sentidos mais aguçados e os poderes do encantamento.

Escolhi esta série para continuar a análise das relações entre os sentidos e o processo criativo, um estudo que estamos fazendo à partir da leitura do livro : Antropologia dos sentidos de David Le Breton. No caso desta série, o que chama atenção é como os encantamentos levam o personagem principal a perda do controle dos seus sentidos ; vivendo cegueiras, amnésias, desorientação e adormecimentos.

Existe sutilmente uma discussão nos episódios de que a visão pode limitar o entendimento e de que existem outros modos de percepção sensível, uma espécie de leitura da memória, que é representada pelo poder hipnótico da personagem Inês.

Ela é a Cuca que faz adormecer as pessoas e consegue entender seus medos e angústias. Seu símbolo é uma borboleta azul que recobre os olhos da pessoa, reforçando novamente a proposta de um olhar para dentro (interior), como via do autoconhecimento.

Navegando nas memórias de Eric , ela desvela uma infância repleta de temores por um convívio com uma mãe fragilizada que se suicida depois de fortes crises de depressão.

No caso da audição temos a personagem Camila, que traz o encanto das sereias : a Iara que com seu olhar leva a vítima a declarar tudo que sabe e também a perder o senso do tempo e do espaço.

A literatura é repleta destas referências da sedução pelo canto, desde Ulisses que na Odisséia, tem que se amarrar ao mastro de seu barco para não destruir seu navio e poder voltar para casa. O personagem Eric consegue escapar da morte, mas esta é outra história ….

Seguindo neste mergulho pelos sentidos podemos retomar o capítulo do livro em que Breton fala sobre o conceito de disparidades sensoriais.

Ele conta o caso de um etnólogo americano visitando uma cerimônia de cura no Peru, onde um xamã realiza um ritual terapêutico com uso do alucinógeno do cacto San Pedro. No relato da experiência o observador estrangeiro permanece indiferente, mesmo tomando a poção mágica, ele não vivencia como os presentes a percepção de um monstro que todos percebem, menos ele. David Le breton comenta :

Ele exclui-se da emoção que aglutina o grupo e continua insensível a efervescência coletiva. Embevecido de representações de outras fontes, o pesquisador americano não consegue abrir os sentidos às imagens ainda sem ancoragem cultural para ele. Sem dúvida, ao longo da iniciação, ele poderá apropriar-se delas, mas , por ora, revela-se ainda demasiado noviço.

A emoção é um processo simbólico

É interessante esta impossibilidade de partilha da experiência quando muda a base dos sentidos. Na série você acompanha esta dificuldade de comunicação entre Eric e sua parceira e amiga Márcia (também policial) e como soa bizarro quando ele conta que o boto se transformou em homem. Ela incrédula desconhece e se preocupa com o amigo.

Esta questão do conhecido que se torna desconhecido é também uma fala de Fabiana a personagem que vive na aldeia perto da floresta e que está grávida do boto.

Este estranhamento se dá quando a pessoa muda seus sentidos e passa a cultivar outros gostos e horizontes sensíveis. Muda a base simbólica e estremece o relacionamento. O invisível é este repertório cultivado que o outro não consegue penetrar ou até mesmo perceber.

A série tem nova temporada e nós continuamos até junho com as análises do livro Antropologia dos sentidos.

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