Lugares de sonhares: a formiga verde de Herzog

No deserto australiano, um grupo de aborígenes tenta defender um território sagrado para seu povo: o lugar onde as formigas verdes sonham. O problema é que, por seus ricos recursos naturais, a região é de grande interesse para uma empresa multinacional de exploração mineral.

Este filme de Werner Herzog de 1984 traz uma discussão muito atual de resistência e sabedoria ancestral.

Em 1973, Herzog foi convidado para o Festival de Filmes de Perth e foi nessa época que soube do caso: Milirrpum v. Nabalco e os direitos à terra que estavam sendo discutidos na Suprema Corte do Território do Norte em 1970-71. Este caso centrou-se em torno dos Yolngu da Terra de Arnhem oriental e suas objeções ao Governo Federal Australiano, que concede um arrendamento da mineração à Nabalco, uma companhia suíça que queria minerar bauxita em terras tradicionais perto da Península de Gove. . A conexão com o caso Milirrpum v. Nabalco foi reforçada quando Herzog finalmente escalou Roy Marika como Dayipu e seu sobrinho, Wandjuk Marika como Miliritbi para os principais papéis entre os aborígenes. Ambos haviam sido pretendentes e testemunhas no caso. Wandjuk Marika, um Rirratjinu do nordeste da terra de Arnhem também era um dos líderes indígenas mais respeitados no país.

O filme inicia com a cena de alguns dos poucos grupos de povos nativos da Austrália, vestindo roupas usadas e carregando lanças enfrentando a riqueza e o poder corporativo dos exploradores de urânio.

As máquinas de dragagem estão prestes a invadir um local sagrado; se as tribos perderem o lugar onde as formigas verdes sonham, elas perdem a alma e a magia; elas perdem os caminhos para a ancestralidade, elas perdem o sonho.

De acordo com a convenção australiana dos Povos Indígenas, o substantivo “Aborígene” foi escolhido como um etnônimo para designar as mais de quinhentas tribos que vivem na Austrália, cada qual com seu nome e idioma.

Segundo a pesquisadora Barbara Glowczewski , no seu livro Devires totêmicos: cosmopolítica e sonhos

“Os espaços do sonhar, para os Aborígenes do deserto, incluem o ritual, o mito e a experiência onírica de encontros com espíritos ancestrais totêmicos, que também são agentes materiais que se transformam em todas as formas animadas e aspectos da terra e do céu.

O sonhar é o presente, mas também o “muito tempo atrás”. Para mim, este tempo que é tanto o presente quanto “o muito tempo atrás” não é um tempo histórico, mas um tempo de metamorfoses. É um tempo dinâmico, porém um tempo de transformação.

Eles narram seus sonhos pela fala, pelas mãos e pelos traços na areia. É tudo muito rápido. As crianças veem tudo desde bem pequenas. No limite, pode parecer que eles compreendem mais rápido o que é traçado na areia do que as palavras. Eles apreendem esse código muito rápido. Parece sempre com uma cartografia, e todas as narrativas são narrativas de viagem.

Sonhares, no plural, designa todos os antepassados híbridos com nomes totêmicos, as narrativas míticas nas quais esses antepassados são os heróis, os locais sagrados, os per- cursos geográficos, os motivos gráficos, cantados ou dançados.

Um homem ou uma mulher aborígene, para definir sua ligação com um lugar, pode também dizer: “Eu sou este ou aquele sonhar”

O drama revelado no filme é que destruição de um lugar sagrado leva a perda de uma incubadora de possibilidades existenciais e suas conexões, os guardiões de um lugar sabem disso e por isso dançam, cantam e sonham para manter pulsante este devir.

É muito difícil para nós, criados numa cultura materialista e sem conexão com outras espécies perceber e compreender todos os sentidos trazidos no filme e na cultura aborígene. A distopia de um capitalismo 24/7 com sua iluminação total, se reflete na perda do sono, do sonho e do espaço de devaneio.

Davi Kopenawa muitas vezes fala que os brancos sonham como machados esquecidos, tal afirmação vai de encontro com este sono a-perceptivo, deste sonho sem conexão com o lugar, desconectado dos outros seres e desenraizado da terra.

Hanna Limulja, conta que entre os yanomami : “O sonho só existe porque é socializado”

O processo de recontá-los aos outros também é importante para que a comunidade continue lembrando e registrando de forma oral aquilo que seus membros sonham todas as noites. Aliás, para os yanomami, a pesquisadora explica, não existe supremacia da vida diurna em relação aos sonhos. As duas experiências têm a mesma importância, até porque consideram que tudo que vivem nos sonhos é real, e já aconteceu, está acontecendo ou ainda vai acontecer.

Mas esta é uma história para o nosso próximo artigo. E você, como tem sonhado ?

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