Contra a interpretação

“O nosso é um tempo em que todo conhecimento intelectual, ou artístico, ou moral, é absorvido por um abraço predatório da consciência: a historicização. Todo ato ou afirmação pode ser considerado como um “desenvolvimento” necessariamente transitório ou, num nível menor, pode ser menosprezado como mero “modismo”.

A mente humana possui agora, quase como uma segunda natureza, uma perspectiva de suas próprias realizações que fatalmente mina seu valor e sua reivindicação à verdade. Por mais de um século, essa perspectiva historicizante tem estado no centro de nossa capacidade para entender.

Talvez o que no início fosse um tique de consciência é agora um gesto gigantesco e incontrolável, o gesto por meio do qual o homem infatigavelmente patrocina a si próprio. “

Susan Sontag

A forma como cheguei a este livro de Susan Sontag é um contra-senso, conheço a crítica da escritora da nossa autofagia fotográfica que confunde a realidade com as miragens imagéticas. Eu sinto um certo constrangimento porque foi na pesquisa sobre os sonhos na página do Instagram do Festival Cria: sonhários, que descobri um vídeo da filósofa se declarando uma sonhadora.

Na pesquisa sobre a sua relação com os sonhos descobri este ensaio polêmico, divulgado originalmente em 1964 e depois reeditado na conhecida coletânea homônima de 1966. Em Contra a interpretação, Sontag propõe o repensar da crítica de arte para além das bases mais rígidas da hermenêutica e estuda a obra do médico neurologista alemão Sigmund Freud (1856-1939). Sabemos que Freud vê a interpretação dos sonhos como a via régia para conhecer as leis do inconsciente.

O sonho não é equivalente ao inconsciente, contudo sua interpretação possibilita o advir de uma lógica que lhe é própria e que pode ser atribuída a todo falante. Em seu ensaio Sontag reflete sobre a influência desta compreensão no universo da artes.

Todos os fenômenos que podem ser observados são classificados, segundo as próprias palavras de Freud, como conteúdo manifesto. Este conteúdo manifesto deve ser investigado e posto de lado a fim de se descobrir debaixo dele o sentido verdadeiro – o conteúdo latente. Para Marx, acontecimentos sociais como revoluções e guerras; para Freud, os fatos da vida de cada indivíduo (como os sintomas neuróticos e os lapsos de linguagem), bem como textos (um sonho ou uma obra de arte) – todos são tratados como motivos de interpretação. Segundo Marx e Freud, estes acontecimentos parecem inteligíveis. Na realidade, nada significam sem uma interpretação. Compreender é interpretar. E interpretar é reafirmar o fenômeno, de fato, descobrir um equivalente adequado.
— Susan Sontag

Na reflexão desenvolvida ao longo do ensaio, a escritora critica a inflação de metáforas que interferem na nossa experiência da arte. Ela defende que as formas sensoriais de aquisição de experiência também têm uma história :

“O que importa agora é recuperarmos nossos sentidos. Devemos aprender a ver mais, ouvir mais, sentir mais”

Esta defesa dos sentidos como um primeiro contato com o outro e suas obras, antes de qualquer pressuposto de análise ou interpretação me parece um convite ao encontro da experiência direta. Uma defesa também do cuidado na interpretação, cada ser é um universo simbólico e portanto não carrega um dicionário de símbolos, respostas simplificadas e diretas. O mesmo critério e generosidade se aplica também as obras: livros, filmes, quadros que devem ser contemplados e apreciados em si antes de qualquer juízo de valor ou classificação.

Mas e os sonhos qual é a relevância destes para Susan Sontag ?

“Je rêve donc je suis.”

Essa paráfrase de Descartes “Sonho, logo existo” é a primeira frase do primeiro romance de Sontag.. O protagonista de O benfeitor, Hippolyte, renunciou a todas as ambições normais — família e amizade, sexo e amor, dinheiro e carreira — para se devotar a seus sonhos.

Só seus sonhos são reais, mas ele é decisivamente contra a interpretação; e seus sonhos não são interessantes pelos motivos habituais, “para me compreender melhor, para conhecer meus verdadeiros sentimentos”, insiste ele: “Estou interessado em meus sonhos como… atos.”

Susan Sontag defende que o sonho em si é a única realidade, mesmo sabendo de todas as contradições que esta visão implica. O sonho como ato é uma abertura ao assombro, ao inconformismo:

“A capacidade de ser assombrado pela beleza é espantosamente tenaz e sobrevive em meio às mais berrantes distrações…”

Para conhecer um pouco mais da vida e obra de Susan Sontag .

Tem também a Biografia de Benjamin Moser

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