Legado criativo: é possível ?

Os princípios gerais da criação podem ser os mesmos nas muitas linguagens artísticas, no entanto é na maneira em que se estabelecem as conexões que descobrimos as especificidades de um determinado processo. A crítica de processo verifica que os projetos são diferentes entre si, não apenas por seu objetivo, o propósito que o guia, mas principalmente pelas conexões estabelecidas entre os elementos da rede que impulsionam a realização do projeto.

O que mantém este impulso no tempo, a longevidade do processo criativo adensando um legado catalisador ?

A interatividade é uma das propriedades desta rede criativa e o acervo criado permite uma viagem no tempo nestas relações estabelecidas.

Cada documento do processo contém uma potência realizada ou latente. Este material revisitado pode abrir uma nova relação, provocando novas associações criativas à partir do acervo conservado. Como os grupos mantém vivo este acervo de criação de maneira que possam se nutrir dos gestos ali guardados ?

Vamos pensar nesta relação com o tempo e a continuidade de uma tradição criativa analisando o grupo Giramundo, de teatro de bonecos

O Giramundo foi fundado em 1970 por Álvaro Apocalypse, Terezinha Veloso e Maria do Carmo V. Martins.

Às vezes, acho que temos duas culturas. Uma é a dos meios de comunicação, estabelecida, oficiosa [...]; outra é aquela produzida a partir de uma relação do homem com o seu meio, aquela cultura de testemunho. Uma é fácil de reconhecer e de localizar; outra você tem que garimpar, descobrir. Uma é a feita para o consumidor de cultura, a outra por necessidade daquela pessoa que faria aquele trabalho independente de qualquer coisa.
— Álvaro Apocalypse

Em 2003, o grupo teve que lidar com o falecimento de Alvaro Apocalypse. Este acontecimento inesperado acentuou no grupo o relacionamento com arquivos de criação do artista, como uma fonte de uma orientação poética.

“A gente percebeu que não daria conta de fazer o que ele fazia...a gente resolveu dividir” Beatriz Apocalipse

“Ninguém estava preparado para que ele não estivesse a frente do grupo.Foi muito difícil lidar com esta situação porque ninguém estava preparado sob aspecto algum, juridicamente foi difícil, artisticamente foi muito complicado, porque a gente sabia que todo mundo olharia pra gente falando assim...não é o Alvaro né “ Ulisses Tavares

A grande coleção de desenhos e projetos técnicos de Álvaro Apocalypse e coleção de fotografias históricas do Giramundo documenta a trajetória dos bonecos do grupo. Como um fator determinante no processo criativo do grupo, ganha destaque o uso regular do desenho como ferramenta direcionada nas montagens, sendo este um dos fatores da coerência organizacional identificada na produção do Giramundo.

A longa prática do desenho marcou o pensamento gráfico de Álvaro Apocalypse, aproximando- o da linguagem da gravura, o desenho aplicado ao Giramundo adquiriu funções instrumentais como a previsão e a experimentação gráfica dos elementos e características que compõem o boneco e o traje de cena no Giramundo, como, por exemplo, forma e volume, escala, cores, mecanismos e estruturas internas.

Em seu Memorial, Memórias Recentes de Um Velho Doido Por Desenho, Apocalypse relata o que parece prever ao referir-se ao desenho a ausência de cor como procedimento adotado no espetáculo Giz (1979):

“Sempre compreendi o desenho como minha linguagem, tanto que o considerava a verdadeira maneira de fazer arte, pela sua concisão, espiritualidade e falta de cor. O desenho é uma escrita, é o resultado de um gesto feito no espaço, numa superfície. Esse gesto pode ser composto pelo deslocamento de um corpo inteiro, pelo deslocamento de parte do corpo, ou seja, do braço, pelo deslocamento da mão, ou apenas pelo deslocamento do pensamento” “

Cecilia Almeida Salles aponta para o fato de que cada artista está inserido num projeto poético pessoal. Afirma:

“em toda prática criadora, há fios condutores relacionados à produção de uma obra específica que, por sua vez, atam a obra daquele criador, como um todo. São princípios envoltos pela aura da singularidade do artista [...] gostos e crenças que regem o seu modo de ação: um projeto pessoal, singular e único “

Marcos Malafaia um dos atuais diretores do grupo comenta no Documentário Ocupação Giramundo (2014) realizado pelo Instituto Itaú Cultural

“Este tipo de viés, do desenho planejado, do desenho que antecede a criação, e que é um legado típico dele. O espetáculo é visto antes num desenho. O espetáculo é planejado, é desenhado. Para isso é necessário que haja uma disciplina, se não há essa vigilância, esta força até coercitiva um pouco, pra impulsionar o desenho que antecede as coisas.naturalmente o processo segue por um caminho artesanal. Que é um caminho da produção mão na massa, pragmática.Eu pego e faço o boneco, eu pego e crio, vou modelando e seja o que Deus quiser, há um aspecto imprevisível.”

Ocupação Giramundo _ SESC

“o desenho está entranhado no funcionamento do Giramundo”

“O desenho entendido na década de 70 e 80 pelo Álvaro é o desenho dibujo com esta visão do desenho artístico. E o nosso desenho é design, desenho projeto, que estava contemplado no Alvaro.(...) A gente explodiu este desenho planejamento por conta do avanço tecnológico, digital, o desenho auxiliado por computador o CAD, o que o Alvaro fazia a mão. Esta idéia do desenho como um projeto total que vai do boneco, da cenografia, da embalagem, dos mecanismos, da identidade gráfica, da legenda, do manual de instrução do boneco, do plano de palco, do plano de luz, do figurino de todos os setores componentes desta obra teatral. O Alvaro criava com as limitações e expansões que um desenho a mão de um papel e um lápis 2b e hoje a gente faz com uma equipe”

Como aponta Cecília Salles .

“A obra de arte é, com raras exceções, resultado de um trabalho que se caracteriza por transformação progressiva, que exige, por parte do artista, investimento de tempo, dedicação e disciplina. A obra é, portanto, precedida por um processo complexo feito de correções infinitas, pesquisas, esboços, planos. Estes rastros deixados pelo artista de seu percurso criador, que são a concretização de uma contínua metamorfose “

Vemos na fala de Marcos Malafaia a continuidade desta metamorfose para além do artista, no processo do grupo recriando à partir do seu legado. Outra questão que me chama atenção, nesta perspectiva processual do grupo é a manipulação do boneco compartilhada.

O manipulador do boneco pode variar de espetáculo para espetáculo, já que o repertório do Girando é reencenado.

Como garantir uma coerência interpretativa com diferentes manipuladores do mesmo boneco ?

“ Como é um grupo que trabalha com repertório tem peças que estão no repertório há muitos anos. Quando se muda o manipulador é lógico que as percepções mudam, então o boneco muda junto. O Pedro do Pedro e o Lobo é o boneco que eu mais trabalhei, eu me dou super bem com o Pedro.

Eu vejo ele com outras pessoas eu acho diferente, não acho melhor ou pior, não é a questão. Daí quando eu vejo alguma coisa que eu não concordo em relação a cena, a composição cênica, aí eu falo. Agora se a pessoa está numa performance que condiz com o que a cena pede, pode mudar, faz o que quiser. Faço até questão que ela faça isso, porque a pessoa está ali pra ser interprete, não pra repetir o que eu fiz “

O Acervo dos projetos do grupo :

Os diários do Alvaro foram adotados como principal ferramenta de análise e criação nos processos criativos do grupo. Seu acervo se distingue de outros similares por estar “vivo”, com grande parte dos espetáculos originais ainda em atividade. Esta dinâmica de reapresentação dos espetáculos, permite a utilização dos projetos de bonecos do acervo para a construção de réplicas dos mesmo.

Vemos no processo do Giramundo que o legado criativo atua como uma memória poética viva, o repertório dos espetáculos, os desenhos e fotos funcionam como um catalisador do processo e mobilizam as conversas e propostas criativas mas não determinam o resultado final. O acervo atua como um participante no grupo e carrega a tradição como um elemento que pulsa possibilidades e linguagens.

Que outro grupo você conhece que reverencia esta memória do fundador ?

Como você faz o desenho dos seus acervos de criação ?

O Museu Giramundo, é um arquivo vivo e em constante mutação da produção do grupo. Nele estão reunidas as experiências da história do Giramundo, na forma de bonecos, composições cenográficas, fotografias, projetos e desenhos originais, documentos, filmes, áudios e arte gráfica. Aberto em 2001, preserva um acervo de mais de mil bonecos.

Vai lá conhecer e refletir sobre a relação da memória viva dos processos criativos !

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